top of page
Buscar

Como um projeto de lei ameaça (mais) as abelhas nativas brasileiras


Essenciais na polinização, as abelhas nativas estão ameaçadas há décadas pela introdução de outras espécies — e um projeto de lei que tramita no Congresso Nacional pode ampliar esses riscos

O ator Marcelo Jekupe estava em sua casa em Cotia, na Grande São Paulo, quando reparou em um canudinho saindo da parede. Ao chegar mais perto, uma surpresa: vários insetos, que mais pareciam vespinhas douradas, entravam no orifício.

Ele se encantou com esses animais pacíficos e descobriu que, na verdade, eram jataís (Tetragonisca angustula), um tipo de abelha nativa do Brasil que não possui ferrão. Na época, Jekupe nem sabia que há abelhas que só existem por aqui, acostumado que estava com a imagem da Apis mellifera, a abelha africanizada, que produz muito mel e cuja ferroada é temida. No mundo, existem 20 mil espécies de abelhas, sendo 2,5 mil só no Brasil. Dessas, estima-se que 300 sejam sem ferrão, como a jataí, e o resto são as chamadas abelhas solitárias, caso das mamangavas, que não vivem em enxame. Em cada região brasileira, as abelhas sem ferrão se desenvolveram adaptadas ao clima e à flora, desempenhando papel importante na polinização.

A transferência de pólen entre plantas realizada por polinizadores, incluindo abelhas, tem um valor estimado entre US$ 235 bilhões e US$ 577 bilhões no mundo, segundo pesquisa divulgada em 2016 pela Plataforma Intergovernamental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), da Organização das Nações Unidas (ONU). Em 2019, a IPBES, em parceria com a Rede Brasileira de Interações Planta-Polinizador (Rebipp), estimou que, no ano anterior, o valor econômico da polinização no Brasil chegou a US$ 12 bilhões. Para o biólogo Osmar Malaspina, professor da Faculdade de Biologia da Unesp de Rio Claro, no interior paulista, essas cifras devem ser ainda maiores. “Setenta e três por cento das plantas do mundo todo são polinizadas por abelhas, o resto é [por] morcego, borboleta”, calcula. “Quase 40% das culturas que produzem sementes e frutos para humanos são polinizadas por abelhas, veja a importância desses bichos para a humanidade.” “Quase 40% das culturas que produzem sementes e frutos para os humanos são polinizadas por abelhas, veja a importância desses bichos para a humanidade” — Osmar Malaspina, professor da Faculdade de Biologia da Unesp de Rio Claro (SP) Algo que Marcelo Jekupe não fazia ideia em 2016, quando descobriu suas “inquilinas” — assim como muita gente ainda não sabe. “A ignorância é a principal questão que causa prejuízo às abelhas nativas. Eu não sabia que existiam abelhas brasileiras, nem pensei que aquilo era uma abelha, porque nunca foi agressiva comigo”, lembra o ator, que decidiu se aprofundar no tema.

Hoje ele produz enxames de abelhas nativas para vender, por meio da empresa BZZ Abelhas Nativas, o que se tornou uma pequena fonte de renda para além dos palcos. E, assim, ele se fez um “meliponicultor”, nome dado a quem cria abelhas brasileiras, que são do gênero melipona. Além do tipo de inseto, a grande diferença para um apicultor, que cria a Apis mellifera, é a proibição do transporte e criação de abelhas nativas em regiões onde sua ocorrência não é natural. Nesses casos, a cultura é feita por pesquisadores e pequenos criadores, mediante emissão do Guia de Trânsito Animal (GTA) e autorização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), sem a qual a prática é considerada tráfico de animal silvestre

Mas o que deveria ser uma proteção pode virar mais uma brecha que coloca as abelhas nativas em risco. Um projeto de lei (PL) que tramita no Congresso Nacional quer liberar o transporte, a criação e a comercialização de enxames de abelhas sem ferrão de qualquer parte do Brasil sem mesmo a necessidade de estudos prévios de impacto ambiental. A proposta colocou meliponicultores e cientistas em alerta máximo, criando uma mobilização contra esse possível “liberou geral”. Na contramão O PL 4429/2020 é de autoria do deputado Darci de Matos (PSD-SC) e foi aprovado no último dia 14 de dezembro na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural. A medida — que agora segue para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) — propõe que “as abelhas introduzidas em estados diferentes daquele de origem poderão ter a situação comercial regularizada junto a órgão ambiental local”, segundo artigo publicado em setembro de 2020 na Agência Câmara de Notícias. “Os meliponários públicos com fins de educação ambiental e conservação de espécies nativas não serão objeto das limitações e proibições previstas para a criação comercial”, finaliza o texto. Para Gerson Luiz Pinheiro, fundador do SOS Abelhas Sem Ferrão, ONG que desde 2016 trabalha no resgate de colmeias de abelhas nativas em diversas cidades e promove educação ambiental, o único sentido dessa lei é legalizar criadores que hoje são ilegais, que compram colmeias na Amazônia e as vendem no Sudeste e no Suldo país. “Cada estado tem espécies viáveis [comercialmente]. Não tem justificativa: é pura ganância, puro comércio, capitalismo selvagem e irresponsável”, critica Pinheiro.

O biólogo Antônio Carvalho, especialista no combate ao tráfico da vida silvestre na ONG Wildlife Conservation Society, fez um estudo entre dezembro de 2019 e agosto de 2021 sobre a venda indiscriminada de abelhas sem ferrão. O artigo, publicado em junho de 2022 na revista científica Insect Conservation and Diversity e na Acta Biológica Paranaense, revelou 308 anúncios de comércio ilegal de colmeias na internet.

As propagandas eram de vendedores de 85 cidades brasileiras, muitas localizadas em áreas de Mata Atlântica. Pelo fato de serem exóticas, o preço das colmeias podem variar de R$ 70 a R$ 5 mil. “Estão tirando os ninhos inteiros da mata. Tem caso de abelha vindo do Acre até Santa Catarina em vários ninhos amontoados em caminhão de transporte de madeira. É um absurdo”, denuncia Carvalho. É também irresponsável. Isso porque há uma diversidade de organismos e vírus que ocupam esses ninhos e podem transmitir doenças a outras abelhas nativas. Quem faz o alerta é o biólogo Cristiano Menezes, chefe adjunto de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Meio Ambiente, em Jaguariúna (SP).

Entomólogo especialista em abelhas, Menezes é favorável ao aprimoramento da legislação, mas se opõe à regra que elimina estudos prévios de impacto ambiental. “É normal, no mundo, fazer uma avaliação de impacto ambiental prévia. É preciso saber que tipos de hospedeiros tem a colmeia, qual competição pode causar [com outras abelhas da região]”, exemplifica. “O que a lei propõe é o oposto: pode criar à vontade até que se prove o contrário. Mas, após o problema instalado, não tem como se livrar disso. Vai na contramão do que um país sério faria. Caminho sem volta O primeiro risco é a hibridização das espécies — o que já acontece em algumas regiões. Há estudos que mostram que a uruçu-negra (Melipona capixaba), abelha nativa das montanhas do Espírito Santo em risco de extinção, está cruzando com a uruçu-nordestina (Melipona scutellaris), levada ilegalmente para a região. “E a uruçu-nordestina foi levada para São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná, [onde] foi distribuída e criada em grande quantidade”, revela Menezes. “Muitos dizem que não têm informação [sobre os riscos], mas há vários artigos publicados, análises do ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade], há um trabalho sólido.” Estão tirando ninhos inteiros da mata. tem caso de abelhas vindo do acre até santa catarina em ninhos amontoados em caminhão de transporte de madeira” — Antônio Carvalho, especialista no combate ao tráfico da vida silvestre Além disso, há cruzamentos entre abelhas da mesma espécie, mas de diferentes regiões. A jataí, por exemplo, é comum em todo o Brasil. No entanto, aquelas nativas da Amazônia têm características diferentes das originárias do Sudeste. “Tem população em Minas Gerais que é diferente da que ocorre no Acre ou no Pará. Elas têm adaptações à região, ao clima, ao ambiente natural, apesar de serem da mesma espécie”, explica o especialista da Embrapa. Uma abelha de clima quente pode transmitir seus genes a jataís resistentes ao frio em Santa Catarina e acabar aumentando a mortalidade dessas comunidades. Flor de abóbora macho (Cucurbita moschata) em cultivo orgânico tendo seu pólen tomado pela abelha Tiúba (Melipona fasciculata) na cidade do Rio de Janeiro — Foto: Getty Images

Um estudo brasileiro liderado pelo pesquisador Rodolfo Jaffé Ribbi, do Instituto Tecnológico Vale, em Belém, relata que a estrutura genética das populações das espécies de abelhas sem ferrão está sendo prejudicada pelo transporte de colônias no Brasil. “Entre 17 espécies estudadas, as que são manejadas possuem menor variabilidade genética em comparação com as não manejadas. Essa homogeneização pode levar à perda de adaptações às condições ambientais locais”, explica Menezes, citando dados da pesquisa publicada na revista Molecular Ecology em 2016.

A mesma situação foi encontrada na Austrália, em uma pesquisa divulgada em 2017 no periódico Conservation Genetics. De acordo com a investigação, populações de abelhas nativas de Queensland, no nordeste do país, têm diferenças significativas daquelas no sudeste australiano. “O movimento de colônias do norte para o sul está impactando a estrutura genética da população do sul, tanto das colônias manejadas como das silvestres”, comenta Menezes. Segundo o entomologista, porém, nem sempre há problemas na introdução de abelhas não nativas de uma região. Ele cita o caso do Japão, que importou uma espécie de mamangava europeia para fazer a polinização de culturas no país, processo que não gerou impactos às abelhas locais. Mas o caso foi diferente no Chile, onde a mesma mamangava europeia espalhou-se por toda a região andina e é considerada uma das causas da ameaça de extinção da mamangava-gigante (bombus dahlbomii), a maior do gênero bombus, abelha nativa do país sul-americano. E uma vez que uma população desses insetos é introduzida no ambiente, não há controle. “Há o caso de um estudo que estou preparando da abelha jataí do Acre que foi introduzida no Triângulo Mineiro e se espalhou de forma muito abundante”, relata Cristiano Menezes.

Durante a pesquisa, ele encontrou mais de 50 ninhos entre as cidades mineiras de Ituiutaba, Uberlândia e Centralina. “Conversei com algumas pessoas que dizem que a jataí local acaba morrendo com a concorrência por comida e lugar de nidificação. É ainda preliminar dizer, mas há risco de causar prejuízo às populações naturais. E o que se faz? Nada, ela [jataí do Acre] já se estabeleceu, não tem o que fazer”, lamenta o pesquisador. Também especialista em abelhas, Osmar Malaspina, da Unesp de Rio Claro, mostra o efeito da propagação de uma espécie como a Apis mellifera. Introduzida no país pelo Rio de Janeiro em 1838, vindo da Itália, a ideia era usar a espécie (Apis mellifera ligustica) na produção de cera para velas utilizadas em missas.

Já na década de 1950, em busca de elevar a produção de mel, o governo brasileiro enviou para a África o professor Warwick Kerr, responsável por trazer 40 rainhas de abelhas africanas (Apis mellifera scutellata), que foram introduzidas justamente em Rio Claro.

As espécies cruzaram e formaram um híbrido, ainda não estudado pela ciência. Essa nova variedade de abelha se expandiu a um ritmo de 300 quilômetros por ano, ocupando todo o Brasil e a América Central. Em 1992, foi identificado um enxame no Texas, nos Estados Unidos. Essa abelha só não chegou ao Chile porque não conseguiu cruzar os Andes, nem o sul da Argentina, já que é adaptada a climas quentes. A importância da abelha nativa para o bioma é fundamental, não se pode brincar com essa responsabilidade” — Gerson Luiz Pinheiro, fundador da ONG SOS Abelhas Sem Ferrão Ninguém sabe o impacto total que essa nova espécie causou a abelhas nativas brasileiras, mas Malaspina conta que elas são o terror dos produtores de maracujá. É que a flor desse fruto é polinizada por uma mamangava que, por acordar depois da africanizada, acaba perdendo o pólen. As abelhas africanizadas também não conseguem polinizar flores de plantas como morango, tomate, berinjela e pimentão. Só as nativas fazem uma vibração específica para que as flores dessas culturas se abram. Além disso, têm o tamanho ideal para promover a polinização da forma como a evolução permitiu em 150 milhões de anos, quando surgiram as plantas angiospermas, aquelas com flores e frutos. Gerson Pinheiro, da SOS Abelhas Sem Ferrão, avalia que a liberação de transporte de abelhas nativas — como propõe o PL 4429/2020 — causará não apenas um impacto econômico, mas também ambiental de proporções imensuráveis. “A importância da abelha nativa para o bioma é fundamental, não se pode brincar com essa responsabilidade”, defende. Sem esses seres, a ganância pode se transformar em prejuízo, e não só financeiro. Todos nós — e o planeta — temos muito a perder.


Por Roger Marza | Edição de Luiza Monteiro 25/02/2023 11h12 Atualizado há 3 meses

 
 
 

Comments


Diamond bee

Diamond Bee - Produtos Artesanais. Todas nossas fórmulas são fabricadas com matéria prima aprovada pela ANVISA. Somos fonte de saúde e alertamos que os conteúdos apresentados neste site e mídias sociais não substituem o aconselhamento e o  acompanhamento médicos, farmacêuticos,  nutricionistas e/ou outros profissionais da saúde.  Responsável Legal 005669061-47.

Localização física - Avenida Afonso penas 3504, Campo Grande/MS, Brasil.

facebook
politica de privacidade
politica de troca
Contate-nos

Obrigado(a), te retornaremos em breve!

bottom of page